Lei que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying) entrou em vigor na semana passada no Brasil.
Todas as vezes que entrava em sala de aula, Gustavo ouvia de um colega de turma que ele parecia um “veadinho” pelo cabelo liso e por estar acima do peso. Em uma oportunidade, já sem paciência, o garoto devolveu a provocação e disse ao colega que o problema dele era ter o “cabelo duro” e foi acusado de racista. Ambos pararam na direção e as famílias foram chamadas para ajudar a contornar o conflito.
Ana, 12 anos, era novata na escola quando alguns colegas de sala pegaram uma foto dela e divulgaram nas redes sociais, dizendo que a garota já havia namorado todos os meninos de uma série, que era vadia e fazia sexo oral com todos. Desesperada, a mãe da garota acionou a escola e a Delegacia Especializada em Crime Contra Criança Adolescente. “Nem mesmo na delegacia sabiam como lidar com essa situação, mas não podia deixar de lado uma situação absurda como essa”, conta a mãe da garota.
Desde a semana passada, entrou em vigor no Brasil uma lei que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying). A Lei nº 13.185 determina que será considerada intimidação sistemática todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação.
Mais do que coibir situações como essas, a proposta deve minimizar os impactos dessas agressões para a saúde física e mental de crianças e adultos. Isso porque algumas dessas situações repercutem de forma tão impactante na vida do indivíduo que podem desencadear traumas até a vida adulta, além de promover humilhações tão severas que facilitam atos extremados como o suicídio e o assassinato.
Força desproporcional
“Os conflitos de relacionamento existem, sempre existiram e são necessários para o crescimento pessoal, no entanto, quando a situação foge do controle, é necessária intervenção rápida e objetiva para promover a violência sofrida”, explica a psicóloga Keila Parente, que atua como orientadora psicopedagógica do Colégio Villa Lobos.
Ela ressalta ainda que, embora o termo esteja desgastado e termine sendo utilizado para designar outras situações como a pirraça e a chacota, é importante salientar que o bullying é uma violência que acontece entre pares.
A experiência da jovem CD (identidade preservada a pedido da fonte) é uma ilustração de como a agressão psicológica e física pode acompanhar alguém por décadas, determinando, inclusive, como suas relações serão determinadas no futuro. Desde muito cedo, ouvia gracejos sobre o desenvolvimento da região pubiana (monte de vênus). A situação assumiu contornos preocupantes quando entrou na pré- adolescência. Ela tinha 10 anos quando um colega de escola da mesma idade lhe disse, durante uma aula de Educação Física, que a estupraria.
No início, ela ignorou, mas eram tão constantes as ameaças que a garota deixou de usar shorts ou calças. Abandonou as aulas de balé e jazz porque as vestimentas possibilitavam que ele e outras pessoas notassem o que ela considerava uma anomalia anatômica.
“Chorava todo dia com medo dele e não conseguia falar isso para ninguém. Fiquei introspectiva e bem calada, coisa que nunca fui”, diz. “Para os outros que me ameaçavam me ‘pegar’, dizia que tinha doenças graves”, conta.
Hoje, noiva, capaz de manter relacionamentos sem o peso das agressões sofridas no primário, ela conta que demorou em se aceitar e precisou fazer terapia para conseguir se relacionar com rapazes, ir à praia ou piscina. “Me achava uma anormal”, narra.
O diretor clínico da Holiste, o psiquiatra Luiz Fernando Pedroso diz que a desproporcionalidade de força empregada em situações de bullying, como a narrada por CD, mostra uma perversão no ambiente escolar e que as boas unidades de educação têm obrigação de impedir que isso prossiga.
“A mera provocação e o conflito por si só não são preocupantes e fazem parte do crescimento individual, no entanto, manifestações excessivas, tidas como patológicas, tanto por parte do agredido como do agressor exigem intervenção”, diz.
O médico, no entanto, afirma que a lei possui um texto esquisito, uma vez que judicializa uma questão educacional. “O Estado termina por retirar a virtude do educador. A questão precisa e deve ser discutida e resolvida, mas no âmbito escolar, que é um espaço privilegiado de socialização”, completa o médico.
Cura social
A psicóloga e orientadora psicopedagógica na Associação Cultural Brasil-Estados Unidos (Acbeu) Raquel Guirra destaca que o bullying alerta para a necessidade de atuar tanto com os agredidos quanto os agressores, pois ambos possuem como característica os problemas de estima.
“É natural que o agredido seja mais bem aceito, mas o agressor também precisa ser tratado, pois, geralmente, é uma criança criada num ambiente de agressividade e que, para ser aceito e visto como forte, precisa apelar para a agressão”, completa.
Ela pontua que se os envolvidos não são assistidos, corre-se o risco de evitar a situação no ambiente de vigilância, mas de se permitir que o cenário volte a se repetir quando ninguém estiver observando.
Com uma postura parecida, Keila Parente é enfática em pontuar a necessidade de família e escola criarem um ambiente seguro para que a criança se sinta à vontade para relatar qualquer situação de violência.
“Geralmente, nas situações de bullying existe a figura do agressor, do agredido e da plateia, então é preciso que a escola sensibilize sobre as normas de convivência e assegure a eles a segurança”, finaliza.